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Trabalho Escravo, ainda uma realidade no Brasil

Trabalho Escravo, ainda uma realidade no Brasil

 

Obras de infraestrutura abrem espaço para uma nova categoria de trabalhadores no país: os resgatados em ações de combate ao trabalho escravo.

A iniciativa começou em Mato Grosso, em construções como a do estádio Arena Pantanal, da Mendes Júnior, em Cuiabá, e da usina hidrelétrica Teles Pires, da Odebrecht, na divisa dessa região com o Pará. E neste ano deve se expandir para ao menos três Estados, que negociam com parceiros locais vagas para essa mão de obra.

Rio, Bahia e Pará discutem programas como o Ação Integrada, que em Mato Grosso empregou 588 trabalhadores resgatados entre 2011 e 2013. A carteira assinada nas obras vem acompanhada de cursos de qualificação e alfabetização promovidos em parceria por entidades como Sesi e Senai e empresas da construção, de colheita de algodão e de criação de suínos.

O número de resgatados que voltam ao mercado de trabalho em programas como esse ainda é pequeno diante do total de libertados no Brasil. Foram 2.300 no ano passado e perto de 46 mil desde 1995, quando o país reconheceu a existência de trabalho análogo à escravidão.

Mas o número de empregados em MT (588) já representa quase dois terços dos 1.615 que receberam o seguro-desemprego especial de resgatados nesse Estado, de 2003 a 2012. A expansão do programa abriu espaço para uma discussão entre fiscais, procuradores do Ministério Público e especialistas que atuam no combate a essa prática.

"É preciso entender que esse trabalhador precisa ser resgatado em vários aspectos. Não adianta simplesmente assinar a carteira. O programa avalia a aptidão profissional, resgata a cidadania (muitos nem documentos têm) e ajuda com cursos práticos. Na sala de aula, prepara esse trabalhador", diz Valdiney Arruda, superintendente do Trabalho em Mato Grosso e coordenador do programa.

 

 


'OUTRA VIDA'

 O paulista José Divino da Silva, 59, chegou à obra da Arena Pantanal desnutrido, com anemia e sem condições físicas de enfrentar a rotina da construção. Foi caminhoneiro e acabou indo parar numa fazenda de algodão em Primavera do Leste (MT).

 "Ganhava R$ 14 para capinar cada rua da plantação. Levava até três dias para fazer uma rua com 3.400 metros. Morava num barracão com 40 colegas. E só tinha uma paredinha separando a gente do chiqueiro. Quando chovia, os porcos invadiam o cômodo."

 Com a saúde frágil, Divino foi empregado como responsável por cuidar do alojamento da obra. "A vida mudou muito. Naquele tempo, a comida era fraca e pouca. A gente comia carne só quando alguém caçava tatu. Agora tenho carteira assinada, salário e consegui comprar meu carrinho, em 36 vezes."

 Na obra de construção da hidrelétrica Teles Pires, a história do baiano Anílton Conceição dos Santos, 30, resgatado de uma fazenda em Itiquira (MT) há menos de um ano, traz semelhanças com a de Divino. "Trabalhava sob sol e chuva. Posso dizer, sim, que era quase um escravo."

 A promessa era receber R$ 1.600 de salário, mas, com todos os descontos e dívidas, diz, o dinheiro nunca chegava ao bolso. "A comida custava caro, a bota era descontada. Cada vez que pedia para ir à cidade, o frete custava R$ 190. Quando saía da fazenda, levava advertência." Anílton fez curso de soldador e tem sonhos: quer estudar mais, ser motorista e viajar pelo Brasil.

 "Como o Brasil virou um canteiro de obras e faltam profissionais, a vinda desses trabalhadores também foi uma alternativa importante", diz Chrispim Sheikespire, gerente administrativo na obra do estádio Pantanal.

Há vários casos de trabalhadores que já estão sendo promovidos. Durval Fernandes da Silva, 40, começou como servente, mudou de cargo duas vezes e vai ser oficial de armador na obra de duplicação da BR-163

Fonte: Folha de S. Paulo. Caderno Mercado. 08.03.2014