Tal como no Nordeste brasileiro, há diversos pontos do mundo em que a
escassez hídrica é motivo de êxodo da população e alvo de políticas
públicas. Em termos globais, a oferta de água corre o risco de entrar
numa crise profunda, pressionada cada vez mais pelo crescimento
demográfico, pelas mudanças climáticas, pela contaminação de fontes e
pelo desperdício. A crise é menos uma questão de insuficiência real, e
mais de mau gerenciamento do uso dos recursos hídricos. A falta de água
afeta não só a saúde humana, mas também o desenvolvimento socioeconômico
da sociedade e o rumo das relações entre nações.
Diante do cenário em que a escassez hídrica atinge 11% da população
mundial, a Unesco (entidade da ONU voltada para a educação, a ciência e a
cultura) declarou que 2013 é o Ano Internacional de Cooperação pela
Água. A iniciativa tem o objetivo de alertar para a necessidade de
administrar melhor as fontes de água, que estão sendo afetadas pelo
aumento do consumo e pelo uso desequilibrado desse recurso fundamental.
As perspectivas são preocupantes: a ONU estima que, se as políticas em
relação à água não mudarem, 1,8 bilhão de pessoas estarão vivendo em
zonas muito secas e dois terços da humanidade estarão sujeitos a alguma
restrição no acesso à água em 2025.
Crise silenciosa
O planeta já enfrenta uma crise de abastecimento de água, apesar de
isso não significar que o líquido esteja diminuindo. A água que circula
por mares, rios e lagos, que está guardada nos depósitos subterrâneos e
nas calotas polares, como gelo, ou que circula em forma de umidade pela
atmosfera, tem um volume quase constante, que demora milhões de anos
para ser alterado. Essa quantidade quase não se altera pois a água está
em eterno processo de reciclagem natural: evapora, desaba como chuva,
escorre para o fundo da terra e retorna para a superfície, de onde volta
a evaporar, no chamado ciclo da água. Por isso, a água é um recurso
renovável.

Afora uma pequena parcela que, quando desmembrada pelos raios solares
em hidrogênio e oxigênio, deixa a atmosfera do planeta, a água que hoje
usamos para matar a sede e para o banho é composta das mesmas moléculas
que formaram os mares em que nadaram os primeiros peixes, as chuvas que
molharam os dinossauros e o gelo que recobriu grandes partes do planeta
nas eras glaciais. Mas um recurso renovável não se mantém,
necessariamente, inesgotável e com boa qualidade todo o tempo. Tudo
depende do equilíbrio entre a renovação e o consumo.
Existem fatores naturais que limitam o volume de água disponível para
os seres humanos. Muitos povos vivem em zonas áridas, e mesmo regiões
ricas em recursos hídricos podem passar esporadicamente por secas que
afetam os mananciais. Isso sempre foi assim. A diferença, na situação
atual, é que enfrentamos uma ameaça de escassez crônica de proporções
globais cuja grande causa é a atividade humana. O consumo crescente e o
desperdício, a contaminação dos mananciais e as alterações climáticas
que a Terra está passando desequilibram a relação entre a oferta e a
demanda de água doce em boas condições para o uso do ser humano.
Avaliar o volume total de água no planeta é uma ciência pouco exata. Os
especialistas reconhecem que muitos dados são pouco confiáveis e os
números podem variar. Ainda assim, a estimativa sobre o volume de água
potável a que o homem tem acesso apresenta valores bem aceitos na
comunidade científica. Esses valores demonstram que, apesar de a Terra
ter três quartos de sua superfície submersos, a parcela de água à
disposição da humanidade é, em relação ao volume total, muito pequena.
Do total de 1,39 bilhão de quilômetros cúbicos de água que revestem o
globo, apenas 2,5% são de água doce. Além disso, a maior parte da água
doce não está ao alcance do homem – está congelada nas geleiras e
calotas polares ou escondida em depósitos subterrâneos. A quantidade de
água a que o homem tem acesso fácil – a superficial, de rios, lagos e
pântanos – é de, no máximo, 0,4% da água doce existente no mundo.
Contamos com isso para matar a sede, cuidar da higiene, gerar energia e
produzir alimentos e bens industriais. No fim das contas, é água mais do
que suficiente. Mas, segundo a ONU, uma a cada nove pessoas no mundo
não tem acesso à água potável em quantidade necessária para garantir sua
saúde, nem um padrão de vida que reflita um bom desenvolvimento social e
econômico.
Causas da escassez
Se o problema não é a quantidade, então o que está causando uma crise
global de água? A resposta é a combinação de diversos fatores: o
crescimento populacional, a expansão do consumo associada à melhoria dos
padrões de vida, mudanças alimentares, aquecimento do planeta e mau
gerenciamento estão aumentando as pressões sobre o abastecimento local e
mundial de água. Essas variáveis passam por mudanças rápidas e muitas
vezes imprevisíveis. A população mundial cresce aceleradamente. Em 1950,
éramos 2,5 bilhões de pessoas, e, em 2011, 7 bilhões. Segundo as
estimativas da ONU, passaremos a 8,3 bilhões em 2030 e a 9,3 bilhões em
2050. Os efeitos desse aumento populacional é sentido em várias regiões.

O crescimento demográfico não significa apenas mais torneiras,
descargas sanitárias e chuveiros nas residências. Significa,
principalmente, que as sociedades precisam gerar mais energia e produzir
cada vez mais, tanto no campo quanto nas fábricas (veja infográfico).
Os cálculos indicam que precisaremos de 60% a mais de energia vindas de
hidrelétricas e de outras fontes renováveis. O desenvolvimento
industrial e agropecuário é hoje responsável pelo consumo de 90% de toda
água usada pela humanidade. E, quanto mais rica é uma população, maior é
o consumo de água por pessoa, tanto no uso doméstico quanto por meio de
sua alimentação e seu modo de vida. Com mais gente, prevê-se que, em
2030, a demanda por comida aumentará em 50% em todo o planeta.
A disparidade entre o consumo de água por ricos e pobres expressa uma
perversa lógica de mercado. À população carente sem acesso ao serviço de
fornecimento de água restam duas tristes opções: ou longas caminhadas
diárias até poços e reservatórios, ou a compra de água de fornecedores
particulares – agueiros ou caminhões-pipa. Nas duas situações, os
prejuízos econômicos e sociais são imensos: estima-se que os africanos
gastem 40 bilhões de horas a cada ano só no trabalho de coleta de água
em pontos distantes e de transporte para suas casas.
Mau gerenciamento
Talvez o maior exemplo de como a ação humana interfere na água
disponível no planeta esteja na Ásia Central, no Mar de Aral. Significa
“mar das ilhas”, mas hoje pouco restou do corpo de água que dava nome ao
local. Encravado entre o Uzbequistão e o Cazaquistão, o Aral era o
quarto maior lago do mundo até 1960, ocupando uma área de 68 mil
quilômetros quadrados – o equivalente a cerca da metade do Ceará. Hoje,
não restam nem 10% de sua área original. O desastre é fruto de projetos
muito mal concebidos na época da União Soviética: as águas dos Rios Amu e
Syr, que alimentam o Aral, foram desviadas para irrigar lavouras em
extensões desérticas daquela parte do mundo. Em pouco tempo, o lago
começou a ver suas águas recuarem, numa dinâmica que não parou mais.
Além de supersaturada de sal, a água que resta está bastante poluída
por agrotóxicos oriundos das lavouras nas proximidades. Em condições tão
adversas, todo o ecossistema do Aral ficou comprometido, e o clima
próximo tornou-se mais desértico. As antigas ilhas surgiram na paisagem
como cumes de áridas montanhas. A insalubridade afeta a saúde humana.
Arrastada pelos ventos, a areia poluída do leito seco espalha-se por
quilômetros, afetando as populações. Como resultado, aumenta a
incidência de doenças respiratórias, de fígado e dos rins e os casos de
câncer.

Os especialistas consideram impossível devolver ao Aral a configuração e
as características de 50 anos atrás. Mais fácil é corrigir a salinidade
e a poluição em algum bolsão, isoladamente. O Cazaquistão realizou uma
experiência no lago norte em 2005, construindo um grande dique para
reter a água no que restava do mar. Com a ação, o nível da água subiu e a
salinidade caiu. Os peixes voltaram e, com eles, a pesca – atividade
econômica que garante a sobrevivência de comunidades locais. Para os
lagos no sul, as perspectivas não são tão boas. É que as obras, muito
maiores, exigem dezenas de bilhões de dólares e dependem de acordos
difíceis de se concretizarem entre as nações que dividem a Bacia do Rio
Amu.
Fontes de conflitos
O exemplo do Mar de Aral revela uma das facetas da crise global de
água, pois as necessidades econômicas acirram, cada vez mais, disputas
pelo precioso líquido. O principal foco de briga está nos rios e bacias
compartilhados por dois ou mais países. Essa foi uma das motivações do
Ano Internacional de Cooperação pela Água. A palavra “cooperação” ganha
um caráter estratégico: a ONU espera que as sociedades desenvolvam
mecanismos de ação compartilhada para manejar as fontes hídricas capazes
de gerar benefícios econômicos e melhorias no padrão de vida das
populações envolvidas. Além disso, o termo não deixa de ter um apelo
pacifista, à medida que os conflitos pelo controle das fontes de água
são uma realidade em vários pontos do planeta.
Um exemplo é o Rio Nilo, que, ao atravessar o Deserto do Saara, é a
base da vida no Egito há milhares de anos. Antes de atingir o território
egípcio, suas águas atravessam diversos países, como o Sudão, a Etiópia
e o Quênia. As águas podem ser afetadas por barragens, uso excessivo ou
poluição na parte superior da bacia antes de chegar ao Egito. As
políticas de gestão do Nilo, por isso, são assunto importante na relação
entre o Egito e seus vizinhos.

No mundo, existem mais de 200 aquíferos localizados em subterrâneos de
mais de uma nação, como o Guarani – que se estende sob o Brasil,
Argentina, Uruguai e Paraguai. Há mais de 260 bacias hidrográficas
transnacionais, que abrangem 148 países e 40% da população mundial. Os
especialistas estimam que, se tais recursos não forem bem manejados em
conjunto pelas nações envolvidas, pode-se criar um contingente de 100
milhões de migrantes nas próximas duas décadas. Avaliam também que, no
século XXI, a água pode ser o principal deflagrador de guerras.
O Instituto Pacífico, especializado no tema, contabiliza mais de 50
episódios de confronto militar, revoltas populares ou ataques
terroristas relacionados ao acesso à água, entre 2000 e 2012.
O atual conflito na Síria tem como um dos panos de fundo a disputa pela
água. Depois que Bashar al-Assad assumiu, em 2000, passou a favorecer
os grandes fazendeiros, que acumularam terra e extraíram do subsolo a
água sem qualquer controle, reduzindo as reservas hídricas do país. As
dificuldades para manter as lavouras acabou por expulsar pequenos
agricultores do campo, e a seca que atingiu o país entre 2006 e 2011
acentuou o êxodo rural. Os centros urbanos incharam, e o governo não
conseguiu prover serviços adequados a uma massa de crianças que chegava
ao início da vida adulta com grande descontentamento com a situação,
quando o conflito começou.
Um dos casos mais persistentes de disputa pela água, que também envolve
a Síria, é a tensão permanente, há décadas, entre o país e Israel, na
disputa pelas Colinas de Golã, região síria ocupada militarmente pelos
israelenses em 1967. Além da importância militar, em função de estarem
em um terreno elevado, as colinas abrigam as nascentes do Jordão, o
principal rio da região. As águas do Jordão são de uso vital para as
populações da região, inclusive para palestinos, que dependem de Israel
para ter acesso a elas. A preocupação aumenta, pois o Rio Jordão vem
perdendo volume de água, e as margens do Mar Morto, onde ele deságua,
estão recuando.
Questão de saúde
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HAITI DOENTE - Menino de Porto Príncipe compra água: a epidemia de cólera, doença transmitida por água contaminada, matou mais de 8 mil pessoas desde 2010
Crédito:
Marco Dormino/UN Photo/UNICEF
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Uma das bases da vida humana, o acesso à água de boa qualidade está
diretamente ligado à saúde. A ONU considera que desenvolvimento
socioeconômico e água são fatores interdependentes. Sem água, não é
possível sobreviver. Mas o excesso dela também atrapalha: enchentes
forçam pessoas a deixarem suas casas, além de transmitirem doenças. Sem
água limpa, a população adoece. E sem saúde, as crianças têm dificuldade
em aprender e os adultos, em trabalhar. Forma-se um círculo vicioso:
sem trabalho e aprendizado, uma população permanece subdesenvolvida e
pobre – o que contribui para mais desinformação e maior incidência de
doenças. Estima-se que, no mundo todo, mais de 700 milhões de pessoas
não tenham acesso à água potável e 2,3 bilhões careçam de esgoto
tratado.
A água transmite ou está relacionada com a transmissão de diferentes
tipos de enfermidades, divididos em quatro grupos de acordo com os tipos
de transmissão:
- Águas fluviais contaminadas: transmissão direta por meio da ingestão ou contato com água não tratada. Exemplo: a diarreia, que mata mais de 2 milhões de pessoas a cada ano.
- Contaminação por falta de água: acontece quando a quantidade de água disponível não é suficiente para a higiene pessoal. Exemplo: a diarreia.
- Doenças causadas por agentes patogênicos, pelo consumo de alimento contaminado ou pelo contato interpessoal: são transmitidas por organismos que vivem na água ou precisam dela em seu ciclo de vida. Exemplo: a esquistossomose, que afeta 200 milhões de pessoas a cada ano.
- Contaminação por hospedeiros: são transmitidas por insetos que têm seu ciclo de vida ligado à água. Exemplos: a dengue, a febre amarela e a malária. Juntas, essas doenças causam 1,5 milhão de mortes por ano no mundo.
As maiores vítimas das doenças são as crianças de países pobres e em
desenvolvimento: do total de pessoas que morrem anualmente de diarreia,
90% têm abaixo de 5 anos. Mesmo quando não causa a morte diretamente, a
água contaminada provoca enfermidades que debilitam o indivíduo, tanto
física quanto mentalmente. É o caso da esquistossomose, que retarda o
crescimento e afeta a capacidade de aprendizagem das crianças.
Para quase todas as doenças, a contaminação poderia ser evitada com
água limpa e uma rede de tratamento de esgoto. A difusão de hábitos de
higiene, o monitoramento de represas e o cuidado com a limpeza de
vegetações aquáticas e controle de pântanos também são mecanismos de
combate à difusão dessas enfermidades. Essas medidas fariam a
mortalidade infantil diminuir drasticamente no mundo e, como resultado,
haveria o aumento da expectativa de vida da população mundial.
A solução da crise de água em toda sua extensão – enfrentamento de
secas, medidas contra a desertificação e as enchentes, gerenciamento
adequado das fontes hídricas – exige investimento maciço de recursos com
objetivo de ampliar o acesso universal aos serviços de fornecimento de
água e saneamento, além de acordos efetivos entre países para a
cooperação no uso da água. Os especialistas apontam também a necessidade
de mudança nos padrões de produção e consumo, para evitar o desperdício
de água nas esferas doméstica, industrial e agropecuária.
Fonte: Almanaque Abril https://almanaque.abril.com.br/materia/um-problema-que-afeta-a-todos